quinta-feira, dezembro 05, 2002
A Caminho do Terceiro Mundo
Por José Pacheco Pereira
Público, Quinta-feira, 05 de Dezembro de 2002
Lamento dizer sobre o actual escândalo centrado na Casa Pia que não acredito um átomo em qualquer intenção altruísta no seu tratamento comunicacional
Tenho a duvidosa honra de ter sido, há meia dúzia de anos, em plena democracia, talvez o único português sobre o qual um director de um órgão de informação, hoje em idênticas funções, propôs que se censurasse por delito de opinião. Quando da muito mal contada "questão dos corredores" da Assembleia da República - sobre a qual um dia contarei o que sei, nunca veio a público e é bastante interessante para se perceber como é que a comunicação social participou numa manobra concertada com a Presidência da República para criar condições para uma crise institucional -, esse eminente jornalista propôs aos seus colegas directores dos órgãos de comunicação social que eu fosse impedido de escrever e de falar nos jornais, rádios e televisão portuguesa. Numa atitude de bom senso democrático, todos recusaram, não sem que acabasse por ser sujeito a ter de ter notas da direcção junto com o que escrevia, nem que mil e uma pequenas "vendettas" anónimas se instalassem no noticiário vulgar, onde passavam despercebidas do grande público que as lia com inocência. Quem conhece bem como estas coisas funcionam sabe como isto é fácil de fazer, e como isto é normalmente impune.
Os textos que publiquei na altura coligi-os num livro "O Nome e a Coisa", e fui relê-los a propósito de mais um momento alto de degradação do espectáculo mediático, agora a propósito da pedofilia. O que me surpreendeu foi que o que dizia tivesse provocado tanta celeuma, porque hoje são muitos os jornalistas que repetem, como sendo a mais trivial das verdades, aquilo que gerava tanta indignação. Lembro-me de muitas discussões na altura e a veemência com que os meus pontos de vistas eram negados. Por exemplo, afirmei que o caminho para a generalizada violação da privacidade estava em curso e lembro-me das negativas apaixonadas sobre as "tradições" da imprensa portuguesa, "que não era do Terceiro Mundo", que o impediriam entre nós. Havia então também a tese de que essas violações eram possíveis para "as figuras públicas", mas nunca para os cidadãos comuns. Também o neguei na altura referindo o caso, já então esquecido e hoje muito mais, dos crimes ocorridos em Leiria, que envolvendo gente comum, tinham levado à divulgação de boatos sobre o comportamento sexual de algumas das vítimas, trechos de diários do assassino, etc., etc. Tudo isto passou despercebido, nem se compreendeu o caminho perverso que se estava a abrir, mas hoje é o trivial do tratamento comunicacional.
Está-se hoje em pleno festim, em que tudo se faz, em que se faz o que se dizia antes nunca se fazer e em que, depois, tudo se justifica perante razões maiores que nós sabemos serem bem menores. Quando hoje se compete nas audiências, com um "reality-show" como o Big Brother, com um "especial" supostamente informativo sobre a pedofilia, estamos de facto perante dois Big Brothers. Como o Big Brother é um jogo, o segundo Big Brother pedófilo, aparentemente muito mais sério, acaba por ser tão um jogo como o primeiro. Estamos de facto no Terceiro Mundo, com uma comunicação social digna do nosso atraso e factor desse atraso.
Lamento dizer sobre o actual escândalo centrado na Casa Pia que não acredito um átomo em qualquer intenção altruísta no seu tratamento comunicacional. Passado o momento inicial, em que havia o mérito de trazer à luz do dia uma situação realmente anómala - a existência consentida pelos responsáveis da Casa Pia de práticas de pederastia e prostituição de menores no estabelecimento e a permanência inexplicável durante dezenas de anos de um funcionário com elas implicado -, o que é matéria informativa, tudo o resto que se lhe acrescentou já obedece a uma lógica que tem tudo menos informação.
Devo dizer que tenho consciência de que há algum artificialismo nesta distinção entre o momento inicial da revelação e o que se seguiu depois, dado que desde início se manifestaram as sementes do sensacionalismo e a enorme ignorância no enquadramento de uma questão que é tudo menos simples. E não me venham dizer indignados que isto é relativismo moral e que sim senhor de um lado estão os inocentes e do outro os culpados, de um lado os violadores do outro os violados. Quando estudarem e conhecerem melhor o assunto e ouvirem com atenção todos os depoimentos - mesmo os já divulgados - e começarem a interrogar-se já será tarde demais e o assunto já não tem novidade.
Esta enorme ignorância é hoje um factor decisivo no espectáculo mediático, porque impede a pena ou a voz do jornalista de hesitar no bombástico título e nas ardorosas incitações à fúria popular que são hoje os noticiários. Tendo já escrito sobre esta ignorância, muito antes destes eventos, estou à vontade para dizer o que digo. Vi na RTP2 passar-se de um programa de exaltação antipedófila para um documentário sobre Gide, que incluía uma exaltação estética da pederastia, sem ninguém, programadores e comentadores perceberem que uma coisa tinha a ver com a outra. Então porque não perseguir a RTP2 por ter passado um programa a favor da pederastia? Até dava um bom título num telejornal - "televisão pública faz apologia da pederastia". Que bom que é e tão cómodo tudo ser a preto e branco!
Sabem o que penso, à luz aliás de escândalos idênticos ocorridos no passado recente, com tanta excitação mediática como este e tão esquecidos como este vai estar quando perder a novidade? É que exactamente a maneira como eles são tratados na comunicação social e a fragilidade das instituições - policiais, judiciais e políticas - em resistir aos aspectos demagógicos desse tratamento farão com que não haja qualquer resultado de todo este alarido. É verdade que no meio do espectáculo algumas vozes decentes se manifestaram - as de vários jornalistas desde Maria Elisa a José Manuel Fernandes, incluindo, num texto muito claro na sua dureza, Óscar Mascarenhas; as do bastonário da Ordem dos Advogados contra a proposta de acabar com a prescrição para este tipo de crimes; as de responsáveis da PJ negando o envio de nomes à Ordem dos Médicos, agora com afã de fazer julgamentos populares e pouco mais.
É que convinha que se fizesse o balanço dos anteriores espectáculos deste tipo - o urânio empobrecido, o caso do Aquaparque, o caso da ponte de Castelo de Paiva, as viagens dos deputados, a Universidade Moderna - para se perceber que, passada a tempestade mediática, as medidas pontuais, de emergência, tantas vezes erradas e apressadas do poder político para responder ao clamor, fica quase tudo na mesma. Quase tudo, porque muitas vezes os mais culpados ficam melhor do que estavam antes. Os culpados bem podem sentir-se incomodados no princípio e preferirem o silêncio à publicidade. Mas, no meio, à medida que o espectáculo mediático avança, só têm razão para se sentirem cada vez mais seguros, e, no fim, só têm que agradecer porque este lhes deu a mais segura das impunidades - a de deixarem de ser novidade.
Hoje não é o poder político o principal mecanismo de impunidade dos poderosos e dos criminosos - é a comunicação social e os seus métodos. Obcecada pelo espectáculo mistura tudo, o que é relevante, com o que é acessório; quer culpabilizar logo de imediato grupos específicos - os políticos por exemplo - e, metendo tudo no mesmo saco, deixa escapar o peixe graúdo por entre as tribulações do peixe miúdo; querendo revelar tudo, revela só que é mais frágil, o que é menos defendido, o que não tem os meios para garantir a sua protecção; querendo fomentar uma vingança justiceira, vai tão longe da justiça que gera naqueles em que alimentou expectativas demagógicas a amarga sensação da impotência. Lá vamos, cantando, rindo e chorando, a caminho do Terceiro Mundo.
salamandrine 12:13
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